domingo, 25 de novembro de 2012
O anseio de felicidade, profundamente radicado no coração humano, esteve
sempre associado ao desejo de se libertar da doença e de compreender o
seu sentido, quando se a experimenta. Trata-se de um fenómeno humano
que, interessando de uma maneira ou de outra todas as pessoas, encontra
na Igreja particular ressonância. Esta, de facto, vê a doença como meio
de união com Cristo e de purificação espiritual e, para os que lidam com
a pessoa doente, como uma ocasião de praticar a caridade. Não é só isso
porém; como os demais sofrimentos humanos, a doença constitui um
momento privilegiado de oração, seja para pedir a graça de a receber com
espírito de fé e de aceitação da vontade de Deus, seja também para
implorar a cura.
A oração que implora o restabelecimento da saúde é, pois, uma
experiência presente em todas as épocas da Igreja e naturalmente nos
dias de hoje. Mas o que constitui um fenómeno sob certos aspectos novo é
o multiplicar-se de reuniões de oração, por vezes associadas a
celebrações litúrgicas, com o fim de alcançar de Deus a cura. Em certos
casos, que não são poucos, apregoa-se a existência de curas alcançadas,
criando assim a expectativa que o fenómeno se repita noutras reuniões do
género. Em tal contexto, faz-se por vezes apelo a um suposto carisma de
cura.
Essas reuniões de oração feitas para alcançar curas põem também o
problema do seu justo discernimento sob o ponto de vista litúrgico,
nomeadamente por parte da autoridade eclesiástica, a quem compete vigiar
e dar as directivas oportunas em ordem ao correcto desenrolar das
celebrações litúrgicas.
Achou-se, portanto, conveniente publicar uma Instrução, de acordo com o
can. 34 do Código de Direito Canónico, que servisse sobretudo de ajuda
aos Ordinários do lugar para melhor poderem orientar os fiéis neste
campo, favorecendo o que nele haja de bom e corrigindo o que deva ser
evitado. Era porém necessário que as disposições disciplinares tivessem
como ponto de referência um fundado enquadramento doutrinal que
garantisse a sua justa aplicação e esclarecesse a razão normativa. A tal
fim, fez-se preceder a parte disciplinar com uma parte doutrinal sobre
as graças de cura e as orações para alcançá-las.
I. ASPECTOS DOUTRINAIS
1. Doença e cura: seu significado e valor na economia da salvação
«O homem é destinado à alegria, mas todos os dias experimenta
variadíssimas formas de sofrimento e de dor».(1) Por isso, o Senhor, nas
suas promessas de redenção, anuncia a alegria do coração ligada à
libertação dos sofrimentos (cfr.
Is 30,29; 35,19; Bar 4,29). Ele é, de facto, «aquele que liberta de todos os males»
(Sab 16,8). Entre os sofrimentos, os provocados pela doença são
uma realidade constantemente presente na história humana, tornando-se,
ao mesmo tempo, objecto do profundo desejo do homem de se libertar de
todo o mal.
No Antigo Testamento, «Israel tem a experiência de que a doença está
misteriosamente ligada ao pecado e ao mal».(2) Entre os castigos com que
Deus ameaça o povo pela sua infidelidade, as doenças ocupam espaço de
relevo (cfr.
Dt 28,21-22.27-29.35). O doente que pede a Deus a cura reconhece que é justamente castigado pelos seus pecados (cfr.
Sal 37; 40; 106,17-21).
A doença porém atinge também os justos e o homem interroga- se sobre o
porquê. No livro de Job, essa interrogação está presente em muitas das
suas páginas. «Se é verdade que o sofrimento tem um sentido de castigo,
quando ligado à culpa, já não é verdade que todo o sofrimento seja
consequência da culpa e tenha um carácter de punição. A figura do justo
Job é uma especial prova disso no Antigo Testamento. (...) Se o Senhor
permite que Job seja provado com o sofrimento, fá-lo para demostrar a
sua justiça. O sofrimento tem carácter de prova».(3)
A doença, embora possa ter uma conotação positiva, como demonstração da
fidelidade do justo e meio de reparar a justiça violada pelo pecado, e
também como forma de levar o pecador a arrepender- se, enveredando pelo
caminho da conversão, continua todavia a ser um mal. Por isso, o profeta
anuncia os tempos futuros em que não haverá mais desgraças nem
invalidez, e o decurso da vida nunca mais será interrompido com doenças
mortais (cfr.
Is 35,5-6; 65,19-20).
É todavia no Novo Testamento que encontra plena resposta a interrogação
porque a doença atinge também os justos. Na actividade pública de Jesus,
as suas relações com os doentes não são casuais, mas constantes. Cura a
muitos deles de forma prodigiosa, tanto que essas curas milagrosas
tornam-se uma característica da sua actividade: «Jesus percorria todas
as cidades e aldeias, ensinando nas suas sinagogas, pregando o Evangelho
do reino e curando todas as doenças e enfermidades»
(Mt 9,35; cfr. 4,23). As curas são sinais da sua missão messiânica (cfr.
Lc 7,20-23). Manifestam a vitória do reino de Deus sobre todas
as espécies de mal e tornam-se símbolo do saneamento integral do homem,
corpo e alma. Servem, de facto, para mostrar que Jesus tem o poder de
perdoar os pecados (cfr.
Mc 2,1- 12); são sinais dos bens salvíficos, como a cura do paralítico de Betsaida (cfr.
Jo 5,2-9.19-21) e do cego de nascença (cfr. Jo 9).
Também a primeira evangelização, segundo as indicações do Novo
Testamento, era acompanhada de numerosas curas prodigiosas que
corroboravam o poder do anúncio evangélico. Aliás, tinha sido essa a
promessa de Jesus ressuscitado, e as primeiras comunidades cristãs viam
nelas que a promessa se cumpria entre eles: «Eis os milagres que
acompanharão os que acreditarem: (...) quando impuserem as mãos sobre os
doentes, ficarão curados»
(Mc 16,17-18). A pregação de Filipe na Samaria foi acompanhada de
curas milagrosas: «Filipe desceu a uma cidade da Samaria e começou a
pregar o Messias àquela gente. As multidões aderiam unanimemente às
palavras de Filipe, ao ouvi-las e ao ver os milagres que fazia. De
muitos possessos saíam espíritos impuros, soltando enormes gritos, e
numerosos paralíticos e coxos foram curados»
(Actos 8,5-7). São Paulo apresenta o seu anúncio do Evangelho
como sendo caracterizado por sinais e prodígios realizados com o poder
do Espírito: «não ousaria falar senão do que Cristo realizou por meu
intermédio, para levar os gentios à obediência da fé, pela palavra e
pela acção, pelo poder dos sinais e prodígios, pelo poder do Espírito»
(Rom 15,18-19; cfr. 1 Tes 1,5; 1 Cor 2,4-5). Não é
por nada arbitrário supor que muitos desses sinais e prodígios,
manifestação do poder divino que acompanhava a pregação, fossem curas
prodigiosas. Eram prodígios que não estavam ligados exclusivamente à
pessoa do Apóstolo, mas que se manifestavam também através dos fiéis:
«Aquele que vos dá o Espírito e realiza milagres entre vós procede assim
por cumprirdes as obras da Lei ou porque ouvistes a mensagem da fé?»
(Gal 3,5).
A vitória messiânica sobre a doença, aliás como sobre outros sofrimentos
humanos, não se realiza apenas eliminando-a com curas prodigiosas, mas
também com o sofrimento voluntário e inocente de Cristo na sua paixão, e
dando a cada homem a possibilidade de se associar à mesma. De facto, «o
próprio Cristo, embora fosse sem pecado, sofreu na sua paixão penas e
tormentos de toda a espécie e fez seus os sofrimentos de todos os
homens: cumpria assim quanto d'Ele havia escrito o profeta Isaías (cfr.
Is 53,4-5)».(4) Mais, «Na cruz de Cristo não só se realizou a
Redenção através do sofrimento, mas também o próprio sofrimento humano
foi redimido. (...) Realizando a Redenção mediante o sofrimento, Cristo
elevou ao mesmo tempo o sofrimento humano ao nível de Redenção. Por
isso, todos os homens, com o seu sofrimento, se podem tornar também
participantes do sofrimento redentor de Cristo».(5)
A Igreja acolhe os doentes, não apenas como objecto da sua solicitude
amorosa, mas também reconhecendo neles a chamada «a viver a sua vocação
humana e cristã e a participar no crescimento do Reino de Deus com novas
modalidades e mesmo mais preciosas. As palavras do apóstolo Paulo
hão-de tornar-se programa e, ainda mais, a luz que faz brilhar aos seus
olhos o significado de graça da sua própria situação: "Completo na minha
carne o que falta à paixão de Cristo, em benefício do seu corpo que é a
Igreja"
(Col 1,24). Precisamente ao fazer tal descoberta, encontrou o
apóstolo a alegria: "Por isso, alegro- me com os sofrimentos que suporto
por vossa causa"
(Col 1,24)».(6) Trata-se da alegria pascal, que é fruto do
Espírito Santo. Como São Paulo, também «muitos doentes podem tornar-se
veículo da "alegria do Espírito Santo em muitas tribulações" (1
Tes 1,6) e ser testemunhas da ressurreição de Jesus».(7)
2. O desejo da cura e a oração para alcançá-la
Salva a aceitação da vontade de Deus, o desejo que o doente sente de ser
curado é bom e profundamente humano, sobretudo quando se traduz em
oração confiante dirigida a Deus. O Ben-Sirá exorta a fazê-lo: «Filho,
não desanimes na doença, mas reza ao Senhor e Ele curar-te-á»
(Sir 38,9). Vários salmos são uma espécie de súplica de cura (cfr.
Sal 6; 37; 40; 87).
Durante a actividade pública de Jesus, muitos doentes a Ele se dirigem,
ou directamente ou através de seus amigos e parentes, implorando a
recuperação da saúde. O Senhor acolhe esses pedidos, não se encontrando
nos Evangelhos o mínimo aceno de reprovação dos mesmos. A única queixa
do Senhor refere-se à eventual falta de fé: «Se posso? Tudo é possível a
quem acredita»
(Mc 9,23; cfr. Mc 6,5-6; Jo 4,48).
Não só é louvável a oração de todo o fiel que pede a cura, sua ou
alheia, mas a própria Igreja na sua liturgia pede ao Senhor pela saúde
dos enfermos. Antes de mais, tem um sacramento «destinado de modo
especial a confortar os que sofrem com a doença: a Unção dos
enfermos».(8) «Nele, por meio da unção e da oração dos presbíteros, a
Igreja recomenda os doentes ao Senhor padecente e glorificado para que
os alivie e salve».(9) Pouco antes, na bênção da óleo, a Igreja reza:
«derramai a vossa santa bênção para que [o óleo] sirva a quantos forem
com ele ungidos de auxílio do corpo, da alma e do espírito, para alívio
de todas as dores, fraquezas e doenças»;(10) e, a seguir, nos dois
primeiros formulários da oração após a Unção, pede-se mesmo a cura do
enfermo.(11) A cura, uma vez que o sacramento é penhor e promessa do
reino futuro, é também anúncio da ressurreição, quando «não haverá mais
morte nem luto, nem gemidos nem dor, porque o mundo antigo desapareceu»
(Ap 21,4). Por sua vez, o Missale Romanum contém uma Missa pro infirmis, onde, além de graças espirituais, se pede a saúde dos doentes.(12)
No De benedictionibus do Rituale Romanum existe um Ordo benedictionis infirmorum que contém diversos textos eucológicos para implorar a cura: no segundo formulário das Preces,(13) nas quatro Orationes benedictionis pro adultis,(14) nas duas Orationes benedictionis pro pueris,(15) na oração do Ritus brevior.(16)
É óbvio que o recurso à oração não exclui, antes encoraja, o emprego dos
meios naturais úteis a conservar e a recuperar a saúde e, por outro
lado, estimula os filhos da Igreja a cuidar dos doentes e a aliviá-los
no corpo e no espírito, procurando vencer a doença. Com efeito, «reentra
no próprio plano de Deus e da sua Providência que o homem lute com
todas as forças contra a doença em todas as suas formas e se esforce, de
todas as maneiras, por manter-se em saúde».(17)
3. O carisma da cura no Novo Testamento
Não só as curas prodigiosas confirmavam o poder do anúncio evangélico
nos tempos apostólicos; o próprio Novo Testamento fala de uma verdadeira
e própria concessão aos Apóstolos e aos outros primeiros
evangelizadores de um poder de curar as enfermidades em nome de Jesus.
Assim, ao enviar os Doze para a sua primeira missão, o Senhor, segundo a
narração de Mateus e de Lucas, concede-lhes «o poder de expulsar os
espíritos impuros e de curar todas as doenças e enfermidades»
(Mt 10,1; cfr. Lc 9,1) e dá-lhes a ordem: «Curai os enfermos, ressuscitai os mortos, sarai os leprosos, expulsai os demónios»
(Mt 10,8). Também na primeira missão dos setenta e dois, a ordem do Senhor é: «curai os enfermos que aí houver»
(Lc 10,9). O poder, portanto, é concedido dentro de um contexto
missionário, não para exaltar as pessoas enviadas, mas para confirmar a
sua missão.
Os Actos dos Apóstolos referem de modo genérico prodígios operados por
estes: «inúmeros prodígios e milagres realizados pelos Apóstolos»
(Actos 2,43; cfr. 5,12). Eram prodígios e sinais e, portanto,
obras portentosas que manifestavam a verdade e a força da sua missão.
Mas, além destas breves indicações genéricas, os Actos referem sobretudo
curas milagrosas, realizadas pelos evangelizadores individualmente:
Estêvão (cfr.
Actos 6,8), Filipe (cfr. Actos 8,6-7) e sobretudo Pedro (cfr. Actos 3,1-10; 5,15; 9,33-34.40-41) e Paulo (cfr.
Actos 14,3.8-10; 15,12; 19,11-12; 20,9-10; 28,8-9).
Quer a parte final do Evangelho de Marcos quer a Carta aos Gálatas, como
antes se viu, alargam a perspectiva e não circunscrevem as curas
prodigiosas à actividade dos Apóstolos e de alguns evangelizadores que
tiveram papel de relevo na primeira missão. Neste particular contexto,
são de extrema importância as referências aos «carisma de cura» (1 Cor
12,9.28.30). O significado de carisma é, por si, muito amplo: o
de «dom generoso»; no caso em questão, trata-se de «dons de curas
obtidas». Estas graças, no plural, são atribuídas a um único sujeito
(cfr. 1 Cor 12,9) e, portanto, não se devem entender em sentido
distributivo, como curas que cada um dos curados recebe para si mesmo;
devem, invés, entender-se como dom concedido a uma determinada pessoa de
obter graças de curas em favor de outros. É dado in uno Spiritu,
sem contudo se especificar o modo como essa pessoa obtém as curas. Não
seria descabido subentender que o seja através da oração, talvez
acompanhada de algum gesto simbólico.
Na Carta de São Tiago, faz-se aceno a uma intervenção da Igreja, através
dos presbíteros, em favor da salvação, mesmo em sentido físico, dos
doentes. Não se dá, porém, a entender se se trata de curas prodigiosas:
estamos num contexto diferente do dos «carismas de curas» da 1 Cor 12,9.
«Algum de vós está doente? Chame os presbíteros da Igreja para que orem
sobre ele, ungindo-o com o óleo em nome do Senhor. A oração da fé
salvará o doente e o Senhor o confortará e, se tiver pecados, ser-lhe-ão
perdoados»
(Tg 5,14-15). Trata-se de um acto sacramental: unção do doente
com óleo e oração sobre ele, não simplesmente «por ele», como se fosse
apenas uma oração de intercessão ou de súplica. Mais propriamente,
trata-se de uma acção eficaz sobre o enfermo.(18) Os verbos «salvará» e
«confortará» não exprimem uma acção que tenha em vista, exclusivamente
ou sobretudo, a cura física, mas de certo modo incluem-na. O primeiro
verbo, se bem que nas outras vezes que aparece na dita Carta se refira à
salvação espiritual (cfr. 1,21; 2,14; 4,12; 5,20), é também usado no
Novo Testamento no sentido de «curar» (cfr.
Mt 9,21; Mc 5,28.34; 6,56; 10,52; Lc 8,48); o segundo verbo, embora assuma por vezes o sentido de «ressuscitar» (cfr.
Mt 10,8; 11,5; 14,2), também é usado para indicar o gesto de
«levantar» a pessoa que está acamada por causa de uma doença, curando-a
de forma prodigiosa (cfr.
Mt 9,5; Mc 1,31; 9,27; Actos 3,7).
4. As orações para alcançar de Deus a cura na Tradição
Os Padres da Igreja consideravam normal que o crente pedisse a Deus, não
só a saúde da alma, mas também a do corpo. A propósito dos bens da
vida, da saúde e da integridade física, Santo Agostinho escrevia: «É
preciso rezar para que nos sejam conservados, quando se os tem, e que
nos sejam concedidos, quando não se os tem».(19) O mesmo Padre da Igreja
deixou-nos o testemunho da cura de um amigo, alcançada graças às
orações de um bispo, de um sacerdote e de alguns diáconos na sua
casa.(20)
A mesma orientação se encontra nos ritos litúrgicos, tanto ocidentais
como orientais. Numa oração depois da Comunhão, pede-se que «este
sacramento celeste nos santifique totalmente a alma e o corpo».(21) Na
solene liturgia da Sexta-Feira Santa convida-se a rezar a Deus Pai
todo-poderoso para que «afaste as doenças... dê saúde aos enfermos».(22)
Entre os textos mais significativos, destaca-se o da bênção do óleo dos
enfermos. Nele pede-se a Deus que derrame a sua santa bênção sobre o
óleo, a fim de que «sirva a quantos forem com ele ungidos de auxílio do
corpo, da alma e do espírito, para alívio de todas as dores, fraquezas e
doenças».(23)
Não são diferentes as expressões que se lêem nos rituais orientais da
Unção dos enfermos. Citamos apenas alguns dos mais significativos. No
rito bizantino, durante a unção do enfermo reza-se: «Pai Santo, médico
das almas e dos corpos, Vós que enviastes o vosso Filho unigénito Jesus
Cristo para curar de toda a doença e libertar-nos da morte, curai
também, pela graça do vosso Cristo, este vosso servo da enfermidade do
corpo e do espírito que o aflige».(24) No rito copto pede-se ao Senhor
que abençoe o óleo para que todos os que com ele forem ungidos possam
alcançar a saúde do espírito e do corpo. Depois, durante a unção do
enfermo, os sacerdotes, depois de terem mencionado Jesus Cristo, mandado
ao mundo «para curar todas as enfermidades e libertar da morte», pedem a
Deus «que cure o enfermo das enfermidades do corpo e lhe indique o
recto caminho».(25)
5. O «carisma de cura» no contexto actual
No decorrer dos séculos da história da Igreja, não faltaram santos
taumaturgos que realizaram curas milagrosas. O fenómeno, portanto, não
estava circunscrito ao tempo apostólico. O chamado «carisma de cura»,
sobre o qual convém hoje dar alguns esclarecimentos doutrinais, não
fazia parte porém desses fenómenos taumaturgos. O problema põe- se
sobretudo com as reuniões de oração que os acompanham, organizadas no
intuito de obter curas prodigiosas entre os doentes que nelas
participam, ou então com as orações de cura que, com o mesmo fim, se
fazem a seguir à Comunhão eucarística.
As curas ligadas aos lugares de oração (nos santuários, junto de
relíquias de mártires ou de outros santos, etc.) são abundantemente
testemunhadas ao longo da história da Igreja. Na antiguidade e na idade
média, contribuíram para concentrar as peregrinações em determinados
santuários, que se tornaram famosos também por essa razão, como o de São
Martinho de Tours ou a catedral de Santiago de Compostela e tantos
outros. O mesmo acontece na actualidade, como, por exemplo, há mais de
um século com Lourdes. Estas curas não comportam um «carisma de cura»,
porque não estão ligadas a um eventual detentor de tal carisma, mas há
que tê-las em conta ao procurar ajuizar, sob o ponto de vista doutrinal,
as referidas reuniões de oração.
No que concerne as reuniões de oração feitas com a finalidade precisa de
alcançar curas, finalidade, se não dominante, ao menos certamente
influente na programação das mesmas, convém distinguir entre as que
possam dar a entender um «carisma de cura», verdadeiro ou aparente, e as
que nada têm a ver com esse carisma. Para que possam estar ligadas a um
eventual carisma, é necessário que nelas sobressaia, como elemento
determinante para a eficácia da oração, a intervenção de uma ou várias
pessoas individualmente ou de uma categoria qualificada, por exemplo, os
dirigentes do grupo que promove a reunião. Não havendo relação com o
«carisma de cura», é óbvio que as celebrações previstas nos livros
litúrgicos, se realizadas em conformidade com as normas litúrgicas, são
lícitas e até muitas vezes oportunas, como é o caso da Missa pro infirmis. Quando não respeitarem as normas litúrgicas, perdem a sua legitimidade.
Nos santuários são também frequentes outras celebrações que, por si, não
se destinam especificamente a implorar de Deus graças de curas, mas que
nas intenções dos organizadores e dos que nelas participam têm, como
parte importante da sua finalidade, a obtenção de curas. Com esse
objectivo, costumam fazer-se celebrações litúrgicas, como é o caso da
exposição do Santíssimo Sacramento com bênção, ou não litúrgicas, mas de
piedade popular, que a Igreja encoraja, como pode ser a solene reza do
Terço. Também estas celebrações são legítimas, uma vez que não se altere
o seu significado autêntico. Por exemplo, não se deveria pôr em
primeiro plano o desejo de alcançar a cura dos doentes, fazendo com que a
exposição da Santíssima Eucaristia venha a perder a sua finalidade;
esta, de facto, «leva a reconhecer nela a admirável presença de Cristo e
convida à íntima união com Ele, união que atinge o auge na comunhão
sacramental».(26)
O «carisma de cura» não se atribui a uma determinada categoria de fiéis.
É, aliás, bem claro que São Paulo, quando se refere aos diversos
carismas em 1 Cor 12, não atribui o dom dos «carismas de cura» a um
grupo particular: ao dos apóstolos ou dos profetas, ao dos mestres ou
dos que governam, ou a outro qualquer. A lógica que preside à sua
distribuição é, invés, outra: «é um só e mesmo Espírito que faz tudo
isto, distribuindo os dons a cada um conforme Lhe agrada» (1
Cor 12,11). Por conseguinte, nas reuniões de oração organizadas
com o intuito de implorar curas, seria completamente arbitrário atribuir
um «carisma de cura» a uma categoria de participantes, por exemplo, aos
dirigentes do grupo. Dever-se-ia confiar apenas na vontade totalmente
livre do Espírito Santo, que dá a alguns um especial carisma de cura
para manifestar a força da graça do Ressuscitado. Há que recordar, por
outro lado, que nem as orações mais intensas alcançam a cura de todas as
doenças. Assim São Paulo tem de aprender do Senhor que «basta-te a
minha graça, porque é na fraqueza que se manifesta todo o meu poder» (2
Cor 12,9) e que os sofrimentos que se têm de suportar podem ter o
mesmo sentido do «completo na minha carne o que falta à paixão de
Cristo, em benefício do seu corpo que é a Igreja»
(Col 1,24).
II. DISPOSIÇÕES DISCIPLINARES
Art. 1
- Todo o fiel pode elevar preces a Deus para alcançar a cura. Quando
estas se fazem numa igreja ou noutro lugar sagrado, convém que seja um
ministro ordenado a presidi-las.
Art. 2
- As orações de cura têm a qualificação de litúrgicas, quando inseridas
nos livros litúrgicos aprovados pela autoridade competente da Igreja;
caso contrário, são orações não litúrgicas.
Art. 3
- § 1. As orações de cura litúrgicas celebram-se segundo o rito prescrito e com as vestes sagradas indicadas no Ordo benedictionis infirmorum do Rituale Romanum.(27)
§ 2. As Conferências Episcopais, em conformidade com quanto estabelecido nos Praenotanda, V, De aptationibus quae Conferentiae Episcoporum competunt(28) do mesmo Rituale Romanum,
podem fazer as adaptações ao rito das bênçãos dos enfermos, que
considerarem pastoralmente oportunas ou eventualmente necessárias, com
prévia revisão da Sé Apostólica.
Art. 4
- § 1. O Bispo diocesano(29) tem o direito de emanar para a
própria Igreja particular normas sobre as celebrações litúrgicas de
cura, conforme o can. 838, § 4.
§ 2. Os que estão encarregados de preparar ditas celebrações litúrgicas, deverão ater-se a essas normas na realização das mesmas.
§ 3. A licença de realizar ditas celebrações
tem de ser explícita, mesmo quando organizadas por Bispos ou Cardeais ou
estes nelas participem. O Bispo diocesano tem o direito de negar tal
licença a qualquer Bispo, sempre que houver uma razão justa e
proporcionada.
Art. 5
- § 1. As orações de cura não litúrgicas realizam-se com
modalidades diferentes das celebrações litúrgicas, tais como encontros
de oração ou leitura da Palavra de Deus, salva sempre a vigilância do
Ordinário do lugar, em conformidade com o can. 839, § 2.
§ 2. Evite-se cuidadosamente confundir estas orações livres não litúrgicas com as celebrações litúrgicas propriamente ditas.
§ 3. É necessário, além disso, que na sua
execução não se chegue, sobretudo por parte de quem as orienta, a formas
parecidas com o histerismo, a artificialidade, a teatralidade ou o
sensacionalismo.
Art. 6
- O uso de instrumentos de comunicação social, nomeadamente a
televisão, durante as orações de cura, tanto litúrgicas como não
litúrgicas, é submetido à vigilância do Bispo diocesano, em conformidade
com o estabelecido no can. 823 e com as normas emanadas pela
Congregação para a Doutrina da Fé na Instrução de 30 de Março de
1992.(30)
Art. 7
- § 1. Mantendo-se em vigor quanto acima disposto no art. 3 e
salvas as funções para os doentes previstas nos livros litúrgicos, não
devem inserir-se orações de cura, litúrgicas ou não litúrgicas, na
celebração da Santíssima Eucaristia, dos Sacramentos e da Liturgia das
Horas.
§ 2. Durante as celebrações, a que se refere o
art. 1, é permitido inserir na oração universal ou «dos fiéis»
intenções especiais de oração pela cura dos doentes, quando esta for
nelas prevista.
Art. 8
- § 1. O ministério do exorcismo deve ser exercido na estreita
dependência do Bispo diocesano e, em conformidade com o can. 1172, com a
Carta da Congregação para a Doutrina da Fé de 29 de Setembro de
1985(31) e com o Rituale Romanum.(32)
§ 2. As orações de exorcismo, contidas no Rituale Romanum, devem manter-se distintas das celebrações de cura, litúrgicas ou não litúrgicas.
§ 3. É absolutamente proibido inserir tais orações na celebração da Santa Missa, dos Sacramentos e da Liturgia das Horas.
Art. 9
- Os que presidem às celebrações de cura, litúrgicas ou não litúrgicas,
esforcem-se por manter na assembleia um clima de serena devoção, e
actuem com a devida prudência, quando se verificarem curas entre os
presentes. Terminada a celebração, poderão recolher, com simplicidade e
precisão, os eventuais testemunhos e submeterão o facto à autoridade
eclesiástica competente.
Art. 10
- A intervenção da autoridade do Bispo diocesano é obrigatória e
necessária, quando se verificarem abusos nas celebrações de cura,
litúrgicas ou não litúrgicas, em caso de evidente escândalo para a
comunidade dos fiéis ou quando houver grave inobservância das normas
litúrgicas e disciplinares.
O Sumo Pontífice João Paulo II, na Audiência concedida ao abaixo
assinado Prefeito, aprovou a presente Instrução, decidida na reunião
ordinária desta Congregação, e mandou que fosse publicada.
Roma, Sede da Congregação para a Doutrina da Fé, 14 de Setembro de 2000, Festa da exaltação da Santa Cruz.
+ Joseph Card. RATZINGER,
Prefeito
Prefeito
+ Tarcisio BERTONE, S.D.B.,
Arc. Emérito de Vercelli,
Secretário
Arc. Emérito de Vercelli,
Secretário
(1) JOÃO PAULO II, Exortação Apostólica Christifideles laici, n. 53, AAS 81(1989), p. 498.
(2) Catecismo da Igreja Católica, n. 1502.
(3) JOÃO PAULO II, Carta Apostólica Salvifici doloris, n. 11, AAS, 76(1984), p. 12.
(4) Rituale Romanum, Ex Decreto Sacrosancti Oecumenici Concilii Vaticani II instauratum, Auctoritate Pauli PP. VI promulgatum, Ordo Unctionis Infirmorum eorumque Pastoralis Curae, Editio typica, Typis Polyglottis Vaticanis, MCMLXXII, n. 2.
(5) JOÃO PAULO II, Carta Apostólica Salvifici doloris, n. 19, AAS, 76(1984), p. 225.
(6) JOÃO PAULO II, Exortação Apostólica Christifideles laici, n. 53, AAS 81(1989), p. 499.
(7) Ibid., n. 53.
(8) Catecismo da Igreja Católica, n. 1511.
(9) Cfr. Rituale Romanum, Ordo Unctionis Infirmorum eorumque Pastoralis Curae, n. 5.
(10) Ibid., n. 75.
(11) Cfr. Ibid., n. 77.
(12) Missale Romanum, Ex Decreto
Sacrosancti Oecumenici Concilii Vaticani II instauratum, Auctoritate
Pauli PP. VI promulgatum, Editio typica altera, Typis Polyglottis
Vaticanis, MCMLXXV, pp. 838- 839.
(13) Cfr. Rituale Romanum, Ex Decreto Sacrosancti Oecumenici Concilii Vaticani II instauratum, Auctoritate Ioannis Pauli II promulgatum, De Benedictionibus, Editio typica, Typis Polyglottis Vaticanis, MCMLXXXIV, n. 305.
(14) Cfr. Ibid., nn. 306-309.
(15) Cfr. Ibid., nn. 315-316.
(16) Cfr. Ibid., n. 319.
(17) Rituale Romanum, Ordo Unctionis Infirmorum eorumque Pastoralis Curae, n. 3.
(18) Cfr. CONCILIO DE TRENTO, sessão XIV, Doctrina de sacramento extremae unctionis, cap. 2: DS, 1696.
(19) AUGUSTINUS IPPONIENSIS, Epistulae 130, VI,13 (PL 33,499).
(20) Cfr. AUGUSTINUS IPPONIENSIS, De Civitate Dei 22, 8,3 (PL 41,762-763).
(21) Cfr. Missale Romanum, p. 563.
(22) Ibid., Oratio universalis, n. X (Pro tribulatis), p. 256.
(23) Rituale Romanum, Ordo Unctionis Infirmorum eorumque Pastoralis Curae, n. 75.
(24) GOAR J., Euchologion sive Rituale Graecorum, Venetiis 1730 (Graz 1960), n. 338.
(25) DENZINGER H., Ritus Orientalium in administrandis Sacramentis, vv. I-II, Würzburg 1863 (Graz 1961), v. II, 497-498.
(26) Rituale Romanum, Ex Decreto Sacrosancti Oecumenici Concilii Vaticani II instauratum, Auctoritate Pauli PP. VI promulgatum, De Sacra Communione et de Cultu Mysterii Eucharistici Extra Missam, Editio typica, Typis Polyglottis Vaticanis, MCMLXXIII, n. 82.
(27) Cfr. Rituale Romanum, De Benedictionibus, nn. 290-320.
(28) Ibid., n. 39.
(29) E quantos a ele são equiparados em virtude do can. 381, § 2.
(30) CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Instrução Il Concilio Vaticano II,
Sobre alguns aspectos do uso dos instrumentos de comunicação social
para a promoção da doutrina da fé, Cidade do Vaticano [1992].
(31) CONGREGATIO PRO DOCTRINA FIDEI, Epistula Inde ab aliquot annis,
Ordinariis locorum missa: in mentem normae vigentes de exorcismis
revocantur, 29 septembris 1985, in AAS 77(1985), pp. 1169-1170.
(32) Cfr. Rituale Romanum, Ex Decreto Sacrosancti Oecumenici Concilii Vaticani II instauratum, Auctoritate Pauli PP. VI promulgatum, De exorcismis et supplicationibus quibusdam, Editio typica, Typis Vaticanis, MIM, Praenotanda, nn. 13-19.
fonte : http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20001123_istruzione_po.html
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